Não se bebe o vazio
- O que mais me incomodava nela era o jeito como cruzava as salas e as portas, descia as escadas, corria pela rua e pegava o ônibus, sem se preocupar com os cabelos voando, as pernas chocando-se uma com a outra e os braços riscando semicírculos no ar. Ela não se preocupava com nada e isso me incomodava. Parecia passar por cima de tudo, sem se dar conta de que havia tudo à frente dela. Parecia ser dona de si.
- Ela não precisava de mim. Não precisava de mim e sabia disso. Ganhava o mundo sem que eu a mostrasse como, fazia mil coisas das quais eu só sabia a metade, enquanto eu me enfurnava nos meus próprios afazeres e não dava conta de um. Ela corria enquanto eu andava, voava enquanto eu corria. Sabia fazer molhos e sopas, mesmo odiando sopas. Eu não sabia fritar ovos. Eu gostava de ovos.
- Ela queria gostar de mim. Eu queria não gostar dela.
- Nós nunca vivemos juntos as dúzias de anos que prometemos viver. Enquanto ela se consumia em festas e bebidas, estofando o corpo com álcool e outras alegrias, eu me perdia e me afogava em copos vazios. Eu não tinha forças para encher meus copos. Não tinha forças para encher meus dias. Não se bebe o vazio.
