
Treze formas de matar Satã
Ou a arte de morrer tentando
A menina masca chiclete na esquina de baixo. Eu sinto pelo cheiro que sobe a rua, pelo barulho da goma esticando e da bola estourando feito carne rosa fragmentada. Ela deve ter uns 17, pouco mais. Eu sou um velho enrugado atravessando de uma calçada para a outra. Os carros não me veem, mas me enxergo no reflexo deles. A poça d’água à minha frente é perturbada pela sua velocidade. A noite é calma, apesar. O ar está impregnado de goma.
No casa noturna, tocavam uma música sem ritmo, uma bossa descabida e mal arranjada. Um homem cuspia num saxofone e expelia as notas. Um garoto bem branco e repleto de espinhas tentava acompanhá-lo no piano. Era uma cena decrépita, as mulheres dançavam, eu respirava a fumaça dos cigarros ao meu redor e me recostava no sofá de couro azul breu. Tinha 37 anos, o auge de uma vida bem vivida. Três batalhas lutadas pelo Exército. Três casos de amor intensos. O perfeito conquistador. O homem do século. O ideal que meus filhos e netos perseguiriam, como um cachorro persegue o próprio rabo, sem nunca alcançá-lo. A música ruim. O copo de uísque. O tédio.
Os meninos estão se revezando batendo punheta para uma foto da Martha Rocha e o sol brilha alto no céu. Foi esse o ápice? É uma época boa em que corro da escola com o dobro da intensidade que corro para ela. Meus pais acabaram de se mudar do interior, compraram uma casa pequena com quintal no subúrbio e me deixam brincar com os vizinhos, que são todos burros. Tento ensiná-los brincadeiras melhores do que correr atrás de bolas ou empinar pipas, mas falho na minha missão. Não acho que aprenderão nunca, estão condenados a ser como seus pais e os pais deles, a trabalhar em algum lugar árido, a contar centavos, a beber cerveja como quem tenta engolir felicidade. Não vejo sentido.
É o verão de 1966 e meu primeiro filho nasce. Sua cara redonda cheia de alegria não me diz nada. As pessoas sorriem, me dão os cumprimentos, minha mulher está deitada na cama, desfalecida de cansaço. Eu preferia um aborto. Saio para o corredor e tudo me parece familiar, como se eu já tivesse estado ali antes. É claro que sim, a maioria de nós nasceu ali, meus amigos e seus conhecidos e meus primos e talvez até mesmo os meus pais, embora eu não saiba mais nada a respeito deles nesse ponto da vida. Quero avisar que o neto deles nasceu, mas não quero ser eu a falar com eles. Eles também não querem saber. Sento no chão, as costas escorregando pela parede, o perfeito patético retrato do desespero. Sou eu, a criança.
1972 e estou na praia ensinando meu filho a andar de bicicleta na calçada pintada de preto e branco, em frente ao mar. Eu sorrio mais do que ele, que está apavorado. Solto a bicicleta, ele anda sozinho, se equilibrando sobre as duas rodas sem que eu faça nada. É esse o momento em que se inicia a minha obsolência.
“Eva, eu sinto muito…”
Tudo é tarde demais no momento em que você se dá conta, invariavelmente tarde demais. A bolsa despenca, o dólar cai e as minhas economias findam, tentando sustentar o que ainda resta da casa que meus pais ergueram. Não me lembro se construíram aquilo com as próprias mãos ou se só compraram, mas me questiono qual a diferença. As dívidas se acumulam e escorrem pela frestas da porta como um dilúvio anunciado em que decidi me banhar. O copo de gin é um inimigo declarado. As paredes laranjas não ornam mais com nada. O telefone toca, mas foda-se. Quando é que se perde tudo? Quando é que a gente acaba com tudo? O menino chora. O leite já está quente na panela.
É outono de 1982 e meu filho está se formando.
É dezembro de 1994 e o cheiro do assado de Natal impregna as paredes da casa, junto aos gritos das crianças. Eva está vestindo a mesma cor vermelha da primeira vez em que nos vimos. Há uma maçã esturricada na boca do porco, todos pedem que eu dê as preces. Junto as mãos.
Nos separamos logo depois de ela descobrir que eu era uma farsa, um reflexo ofuscado pela velocidade das coisas, incapaz de segui-las, incompetente para dirigi-las. Estou sentado na praça que frequentávamos quando crianças, alimentando os pombos. Sou o reflexo encoberto, as rachaduras no espelho em que me vi quarenta anos antes, sentado no couro azul da boate, esperando algo acontecer. O que será de mim, quando morrer? Para onde será que vamos? Para onde será que irão comigo? As memórias são uma coisa engraçada, ou vocês as tem ou elas têm você.
É cedo demais e meu pai me acorda. Ele está sorrindo. Sei lá por que, mas sorrio também. A escola começa logo mais.
Há goma de mascar nos meus cabelos e nunca mais vou me esquecer desse cheiro. Acho o máximo da contravenção. Apanho quando chego em casa, mas não ligo, é para isso que servem os pais. Cortam meu cabelo inteiro, raspam até o último fio. Não escuto mais nada, tudo parece calmo, como se a briga não importasse mais. A pele machucada pelos tapas para de arder. Durmo no colo da minha mãe.
São as minhas últimas três horas de vida. Lembro do que me disseram uma vez sobre salvação: se não carregássemos o peso do pecado original, só teríamos que nos salvar de nós mesmos. Acho que estavam certo. Levanto para tomar água, o fogo do Inferno me aquece o coração. Não morrerei pela soma dos meus múltiplos erros, mas estive vivo pela multiplicação dos meus poucos acertos. Pelas frágeis lembranças que me preservaram. Treze formas de me salvar do esquecimento. Treze maneiras de me livrar de todo o mal.